A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) anunciou, nesta sexta-feira (24), a suspensão imediata da compensação financeira oferecida pela empresa Tools for Humanity pela coleta de dados biométricos de cidadãos brasileiros. O pagamento, feito em dinheiro ou criptomoedas, foi considerado um fator que pode comprometer o consentimento livre e esclarecido das pessoas, em especial aquelas em situação de vulnerabilidade econômica.
A decisão foi tomada após a Coordenação-Geral de Fiscalização (CGF) da ANPD avaliar que o tratamento desses dados sensíveis é “particularmente grave”, principalmente porque a exclusão das informações já coletadas não é viável, e a revogação do consentimento não é reversível. A medida preventiva já entrou em vigor no sábado (25), e a empresa deverá se adequar às determinações da agência reguladora.
A coleta de íris e o pagamento em criptomoedas
A Tools for Humanity opera no Brasil coletando dados biométricos, especificamente a íris dos usuários, como parte de um projeto ligado à rede Worldcoin, uma iniciativa global que busca criar uma identidade digital única baseada em tecnologia blockchain. Em troca, os participantes recebem pagamentos em criptomoedas, o que levantou preocupações sobre a proteção da privacidade e a possibilidade de exploração de pessoas em situação de vulnerabilidade financeira.
A ANPD destacou que o modelo de pagamento pode influenciar a decisão das pessoas, tornando o consentimento menos livre e informado, o que fere os princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Além disso, segundo a autoridade, o fato de não ser possível excluir as informações coletadas torna o tratamento dos dados ainda mais crítico.
A LGPD determina que dados pessoais sensíveis, como os biométricos, só podem ser tratados mediante consentimento livre, informado, inequívoco e fornecido de maneira específica e destacada, para finalidades claramente determinadas. No caso da Tools for Humanity, a ANPD entende que esses requisitos não estavam sendo devidamente seguidos.
Investigação e fiscalização
O caso já vinha sendo monitorado pela ANPD desde novembro de 2024, quando um processo de fiscalização foi instaurado. Na última quinta-feira (23), o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP) enviou um pedido ao Ministério Público Federal (MPF) solicitando a abertura de uma investigação para apurar eventuais violações da LGPD por parte da empresa.
Com a suspensão do pagamento pela coleta de íris, a ANPD também determinou que a companhia torne mais transparente a forma como trata as informações dos cidadãos brasileiros. A empresa deverá disponibilizar em seu site detalhes claros sobre a coleta, armazenamento e eventual uso desses dados.
A decisão da ANPD reforça o papel da agência na proteção dos direitos dos titulares de dados no Brasil e levanta um alerta para empresas que operam com tecnologias emergentes baseadas em identificação biométrica.
A resposta da empresa
A Tools for Humanity, por meio da rede Worldcoin, declarou que “opera em conformidade com todas as leis e regulamentos do Brasil” e que está dialogando com a ANPD para esclarecer a questão. Em nota, a empresa afirmou:
“Estamos em contato com a ANPD e confiantes de que podemos trabalhar com o órgão para garantir a capacidade contínua de todos os brasileiros de participarem totalmente da rede World.”
A companhia não informou se irá modificar sua política de coleta de dados ou se pretende oferecer opções para que os usuários possam excluir suas informações biométricas já armazenadas.
Impactos e debates sobre privacidade digital
A decisão da ANPD reacendeu debates sobre o uso de biometria para identificação digital e o impacto de novas tecnologias na privacidade dos indivíduos. Especialistas apontam que, embora a coleta de íris possa ter aplicações inovadoras, a falta de controle sobre a exclusão dos dados e a dificuldade de revogar o consentimento são pontos críticos que podem comprometer os direitos dos cidadãos.
Além disso, o modelo de pagamento por dados biométricos gera preocupações sobre a possibilidade de exploração econômica, especialmente em países onde a desigualdade social é alta. Organizações de defesa da privacidade alertam que oferecer dinheiro em troca de dados sensíveis pode induzir pessoas a aceitar termos que não compreendem completamente, colocando em risco sua privacidade e segurança digital.
Por outro lado, defensores da iniciativa Worldcoin argumentam que a tecnologia blockchain pode trazer avanços na identificação digital global e inclusão financeira, especialmente para aqueles que não têm acesso a documentos tradicionais. No entanto, a falta de regulamentação específica para esse tipo de serviço ainda é um desafio para autoridades ao redor do mundo.
O que esperar daqui para frente?
Com a suspensão imposta pela ANPD, a Tools for Humanity precisará revisar suas práticas para garantir conformidade com a LGPD. A empresa pode recorrer da decisão, mas, enquanto isso, deve cumprir as exigências da agência reguladora.
O caso também pode abrir precedentes para uma regulamentação mais rígida sobre o uso de biometria e pagamento por dados pessoais no Brasil. A ANPD vem reforçando suas ações fiscalizatórias, e outras empresas que trabalham com tecnologias semelhantes podem ser alvo de análises futuras.
O episódio destaca a importância do debate sobre privacidade digital e proteção de dados em um mundo cada vez mais conectado, no qual a segurança da informação se torna um dos pilares fundamentais para garantir os direitos dos cidadãos.