A União perdeu uma vantagem que tinha em relação a Estados, municípios e o Distrito Federal e agora poderá ter ainda mais dificuldades para reduzir a dívida ativa, estimada hoje em R$ 2,4 trilhões. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que são inconstitucionais previsões do Código Tributário Nacional (CTN) e da Lei de Execuções Fiscais (nº 6.830, de 1980) que estabelecem a preferência do governo federal na cobrança judicial de créditos tributários.
A prioridade era importante para a União porque é relativamente comum um mesmo devedor estar inscrito na dívida ativa federal e também em alguma estadual ou municipal. Essa vantagem de receber na frente dos demais entes, segundo especialistas, trazia para Estados e municípios um certo desestímulo às cobranças. “Na prática, grandes devedores têm dívidas com todo mundo e têm condições de pagar, mas quando pedíamos o bloqueio de bens a União atravessava”, afirmou ao Valor o procurador Marcelo Proença, do Distrito Federal, ente que levou a questão ao STF (ADPF 357).
De acordo com Ricardo Almeida, assessor jurídico da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf), levando em conta a grande quantidade de empresas em processo falimentar, recuperação judicial e em outras execuções coletivas, os valores em discussão entre União, Estados e municípios nas penhoras são expressivos. No Estado de São Paulo, o estoque de créditos inscritos em dívida ativa é de aproximadamente R$ 340 bilhões, dos quais R$ 190 bilhões são de devedores inativos ou baixados – inclusive falidos. Do restante, R$ 60 bilhões estão garantidos. Restam R$ 90 bilhões sendo cobrados.
Em nota, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) afirma que, “em princípio, esse entendimento, em casos específicos, facilita a recuperação de valores para Estados e municípios, mas é muito cedo para saber o real impacto da decisão na arrecadação”. A prioridade para a União veio com o Código Tributário Nacional. A norma estabelece que a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial ou similar. Mas fixa uma ordem de preferência, colocando União na frente de Estados e municípios. A Lei de Execuções Fiscais tem a mesma previsão.
A Fazenda Nacional alegou na ação que o tratamento prioritário à União beneficiaria todos os entes por causa dos mecanismos de repartição de receitas. Agora, porém, pela decisão do Supremo, terá preferência quem solicitar primeiro a penhora ou outras formas de cobrança dos créditos. O STF já havia julgado esse assunto e até editado uma súmula reforçando o direito da União, a de nº 563. O texto, porém, tinha como base a Constituição Federal de 1967. Em seu voto, a relatora do caso, ministra Cármen Lúcia, afirmou que o contexto constitucional e o modelo de federação mudaram em relação à Constituição de 1967, que previa uma federação “formal”, já que tudo se concentrava na esfera federal.
De acordo com a relatora, no artigo 18, a Constituição de 1988 iguala no plano interno União, Estados, Distrito Federal e municípios. Para ela, não há que se falar em menor ou maior relevância entre as competências de cada um dos entes da federação. No entendimento de Cármen Lúcia, pode haver critério distintivo para ordem de pagamento de créditos, como no caso dos trabalhistas, por exemplo, desde que seja válido. “No caso, nem a diferenciação é feita pela norma constitucional nem se comprova, a meu ver, finalidade constitucional legítima buscada para a distinção estabelecida nas normas questionadas”, disse no voto.
O entendimento da relatora foi acompanhado pelos ministros Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello e Luiz Fux. Os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes divergiram. Segundo o ministro Kassio Nunes Marques, a Constituição traz um federalismo cooperativo e as leis editadas pela União, ao atribuírem ordem de prioridade, romperam com a igualdade entre as esferas federadas e acabam por tolher a capacidade de Estados e municípios satisfazerem créditos quando concorrem com a União. Para o ministro Ricardo Lewandowski, qualquer privilégio de um ente sobre outro é incompatível com o federalismo cooperativo adotado desde a Constituição de 1988. “Há um entrelaçamento de competências e rendas e essa cooperação se destina à obtenção do bem comum do povo”, afirmou.